"O grande responsável pela situação de desequilíbrio ambiental que se vive no planeta é o Homem. É o único animal existente à face da Terra capaz de destruir o que a natureza levou milhões de anos a construir"





domingo, 23 de julho de 2017

Polygonum lapathifolium L.

Nomes comuns:
Erva-bastarda; erva-pessegueira; mal-casada

Polygonum lapathifolium
Polygonum lapathifolium pertence à família Polygonaceae e posso dizer que esta é uma das mais complexas em termos de taxonomia. Mas, afinal, não é o que ultimamente se tem dito da maioria das famílias e géneros botânicos?
As plantas apresentam características tão variadas e complexas que se torna cada vez mais difícil decidir a melhor forma de as agrupar. A classificação dos seres vivos, conhecida como taxonomia, teve as suas origens na Antiga Grécia. Foi reformulada e vestida de novo há quase 300 anos, quando Linnaeus desenvolveu o sistema de nomenclatura binominal. Este sistema ainda hoje é utilizado, apesar das profundas transformações que, entretanto, sofreu. Os microscópios eletrónicos permitem que os cientistas observem os organismos com detalhe muito maior e o sequenciação de todos os genomas permite que se façam distinções mais exatas entre organismos intimamente relacionados. 

A classificação antiga baseou-se essencialmente em critérios morfológicos mas o desenvolvimento das técnicas de ADN revelam grande quantidade de informações sobre a semelhança e relação entre os organismos que, em muitos casos, podem ir contra a classificação morfológica tradicional. Infelizmente, a tecnologia de ADN ainda é muito cara e demorada.
  
Os desenvolvimentos tecnológicos e científicos nos últimos 50 anos também mudaram o foco de biólogos. Linnaeus acreditava que as espécies faziam parte do plano de criação divina (ainda não existia a teoria da evolução e da seleção natural desenvolvida por Charles Darwin) mas os cientistas de hoje querem entender a natureza da vida e o processo da evolução e baseiam-se no princípio da ascendência comum. 

Sabemos hoje que Linnaeus subestimou o número de plantas da Terra. Posteriormente mais e mais espécies foram sendo descritas em jornais e publicações. Na ignorância do trabalho uns dos outros, por vezes, as mesmas espécies acabaram sendo descritas e registadas com nomes diferentes por dois ou mais autores, gerando uma confusão que chegou aos dias de hoje. Essa é apenas uma das razões que contribui para a listas de sinónimos bastante extensas de algumas espécies. 

A verdade é que nem todos os problemas vêm do passado. Apesar dos novos e sofisticados meios que podem ser postos ao dispor dos cientistas faltam, muitas vezes, os fundos que sustentem e possibilitem as investigações. Outro problema é a falta de consenso que resulta da escolha dos caracteres para análise que, sendo múltiplos, nem sempre são coincidentes, cada cientista tendo a sua própria opinião sobre quais são os fundamentais, pelo que as conclusões também resultam diferentes. Todos concordam que é preciso aperfeiçoar os sistemas de classificação mas, perante a grandeza da tarefa, o consenso não será fácil de conseguir, a breve prazo.

Polygonum lapathifolium
A família Polygonaceae inclui de 43 a 55 géneros, abrangendo de 1100 a 1200 espécies que ocorrem numa grande variedade de habitats situados maioritariamente em zonas temperadas do hemisfério norte com algumas espécies em regiões tropicais e subtropicais. 
Os membros de Polygonaceae são morfologicamente muito variados. Desde que a família foi reconhecida por Jussieu em 1789 a taxonomia de Polygonaceae tem sido continuamente revista. Em causa estão, sobretudo, a circunscrição de subfamílias, tribos e géneros. Muito resumidamente, numa das mais recentes revisões, esta família foi dividida em duas subfamílias, Eriogonoideae e Polygonoideae.

Polygonum, grupo a que pertence a espécie em questão no "post" de hoje, Polygonum lapathifolium, é o género mais alargado da subfamília Polygonoideae
Linnaeus estabeleceu o género Polygonum em 1754 como uma unidade heterogénea e alargada, nela incluindo diversas espécies não relacionadas e que não sabia onde mais poderia colocar. Desde logo, Polygonum passou a ser considerado um dos grupos mais problemáticos e a representar um grande desafio para os taxonomistas. 
Não cabe aqui a resenha das diferentes interpretações e consequentes alterações que Polygonum sofreu ao longo da sua história, em que foi subdivido em números variáveis de seções e subseções, desmembrado em diferentes géneros e tratado como tribo Polygoneae

Em "sentido amplo", Polygonum compõe-se presentemente de grupos mais pequenos de "sentido restrito", situação confirmada por estudos moleculares recentes. 
Dentro do sentido amplo de Polygonum incluem-se vários géneros sendo que um deles é o género Polygonum (em sentido restrito) e também o género Persicaria, entre outros. Menciono aqui o género Persicaria (descrito por Miller em 1754) porque a espécie Polygonum lapathifolium é incluída nesse género por alguns botânicos/sistemas e classificada como Persicaria lapathifolia
O género Persicaria é mais um pomo de discórdia, sendo considerado por alguns como parte de Polygonum (no sentido amplo) ou sinónimo de Polygonum (no sentido restrito) e por outros, como género de direito próprio, fazendo parte da tribo Persicarieae. Todo o historial é, na realidade, muito complicado.
  
Enfim, depois de dissecado todo o material disponível sobre o assunto, a única conclusão a que se pode chegar é que não há conclusão nenhuma. Ou seja,  a exacta circunscrição e classificação infragenérica de Persicaria Mill. e Polygonum L. ainda são tema de debate.

Segundo o portal Flora-on (Sociedade Portuguesa de Botânica) ocorrem em Portugal 13 espécies do género Polygonum, na sua maioria autóctones. 
Polygonum lapathifolium, espécie autóctone de Portugal continental e Madeira, naturalizada nos Açores.
Polygonum lapathifolium é uma espécie autóctone de Portugal continental e arquipélago da Madeira. Também ocorre no arquipélago dos Açores, embora como espécie introduzida e naturalizada.

De forma geral Polygonum lapathifolium distribui-se pelas regiões temperadas do hemisfério norte (Europa, oeste asiático) e África do Sul.

Polygonum lapathifolium
Esta espécie infestante prefere os locais húmidos ou inundados, nitrogenados e em pleno sol.
Esta é uma infestante anual, especialmente problemática em culturas de regadio na primavera e verão. Vive em habitats perturbados por atividades humanas, preferencialmente húmidos, não só em solos cultivados mas também ao longo de margens de cursos de água e em valas de escoamento. É particularmente abundante em solos ricos em nutrientes e de consistência friável. Consegue conviver com situações pontuais de redução de humidade e nutrientes mas é exigente no que diz respeito à exposição solar, sendo intolerante à sombra.
Polygonum lapathifolium
Os caules, finos e de cor avermelhada, são formados por nós e entrenós.
O sistema radicular de Polygonum lapathifolium é superficial e fibroso. 
Os caules são herbáceos e crescem de forma ereta ou ascendente, podendo chegar aos 80 cm de altura. São hastes finas, lisas e lustrosas, mais ou menos ramificadas, de cor verde ou avermelhada e formadas por nós e entrenós.
Vem a propósito referir que o termo Polygonum deriva do grego: “poly” = muitos e “gonu” = joelhos, referindo-se aos múltiplos nós inchados presentes na constituição dos caules.
Polygonum lapathifolium
Algumas folhas apresentam uma mancha escura em forma de V.
As folhas dispõem-se de forma alternada, ligando-se ao caule por um pecíolo curto; são inteiras e lanceoladas ou elípticas, mais largas perto da base e estreitando progressivamente para o ápice, com alguns pelos curtos e rígidos protegendo as margens do limbo. Algumas, mas não todas, apresentam uma mancha escura na pagina superior do limbo em forma de V . 
Polygonum lapathifolium
Página superior da folha em que se notam as glândulas mencionadas no texto
 e ainda os bordos protegidos por pelos curtos e rígidos.
As folhas podem ser glabras ou ligeiramente pubescentes, com indumento de pelos curtos e densos na página superior e pelos curtos, espessos e emaranhados na página inferior ou apenas ao longo das nervuras. A superfície das folhas apresenta inconspícuas glândulas resinosas, translucidas ou amareladas, em ambas as páginas ou apenas na inferior.
Polygonum lapathifolium
As ócreas são formadas por duas estípulas unidas e que envolvem os nós do caule.
Tal como é característico da família Polygonaceae, esta espécie possui duas estipulas que são membranosas e estão unidas e enroladas em torno dos caules no ponto onde as folhas se inserem no caule, fundindo-se com ele e formando uma estrutura cilíndrica denominado ócrea. As ócreas de Polygonum lapathifolium apresentam nervuras tipicamente proeminentes e avermelhadas, com a borda truncada ou com cílios curtos, tornando-se mais escuras e escamando com a idade.
Polygonum lapathifolium - Ócrea

NOTA sobre as estípulas:
Apenas cerca de um terço das angiospermas (grupo das plantas que dão fruto a partir da fecundação do ovário de uma flor, o maior e mais moderno grupo de plantas, englobando cerca de 230 mil espécies) possuem estipulas. Estas aparecem aos pares e variam de espécie para espécie, em tamanho e morfologia; podem ser estruturas laminares, glândulas, pelos, espinhos ou escamas; algumas são caducas e outras são perenes; por vezes são insignificantes, outras vezes são de tal forma desenvolvidas que se confundem com verdadeiras folhas, ajudando no processo da fotossíntese; podem transformar-se em gavinhas, para ajudar no crescimento vertical da planta ou em espinhos, como forma de reduzir a predação por vertebrados herbívoros; em muitas espécies as estipulas são pequenas e residuais, sem nenhuma função óbvia; noutras espécies evoluíram para nectários extraflorais atraindo formigas (com as quais estabelecem interações mutualistas, de que beneficiam tanto as plantas como as formigas).
A função primitiva das estipulas permanece algo obscura e a maioria das angiospermas que não as tem, não parece sentir-lhes a falta. Contudo, a ausência destas estruturas é tão importante como a sua presença, pois é um fator fundamental na identificação das espécies.

Polygonum lapathifolium - inflorescência
As flores de Polygonum lapathifolium agrupam-se em inflorescências cilíndricas, do tipo espiciforme, em que as flores sésseis se inserem de forma densa sobre um eixo alongado geralmente coberto de pequenas glândulas, assemelhando-se a uma espiga com cerca de 5 a 7 cm de comprimento. Estas inflorescências são longas, esguias e flexíveis, curvando-se para baixo de forma bastante atraente. Esta característica é única e marca a diferença em relação a outras espécies do mesmo género que apresentam inflorescências mais ou menos eretas.
Polygonum lapathifolium - flores agrupadas na inflorescência
As flores nunca abrem por completo. Cada pequena flor, com apenas cerca de 3 mm de comprimento apresenta 4 tépalas unidas na base. As tépalas são segmentos indistintos que constituem o perianto, fazendo as vezes de sépalas e pétalas e em cujo interior se situam os órgãos reprodutores masculinos e femininos. As tépalas apresentam uma gradação de cores que vai desde o branco até ao rosa-claro passando pelo esverdeado e apresentam glândulas amareladas na sua superfície. 
Polygonum lapathifolium
As setas indicam o contorno das nervuras das tépalas em forma de ancora, característico desta espécie.
Os pequenos pontos amarelos são as glândulas.
De forma característica, as tépalas apresentam uma nervação distintamente bifurcada, as nervuras curvando-se para baixo perto do ápice, com contorno semelhante a uma âncora. Este é um detalhe morfológico distintivo e único nesta espécie. 
O ovário tem 2 estiletes ligados pela base. Os estames são 6.

A floração ocorre desde o fim da primavera até ao fim do verão e dura cerca de mês e meio a dois meses.
As tépalas mantêm-se na planta durante a maturação dos frutos. Estes são aquénios que uma vez maduros apresentam cor muito escura e são brilhantes, de forma ovóide, por vezes grosseiramente triangulares e com os lados ligeiramente côncavos.
Polygonum lapathifolium
Frutos imaturos

Polygonum lapathifolium
As setas indicam os frutos maduros

Esta planta ressemeia-se naturalmente em locais que lhe sejam favoráveis, sendo esta a única forma de dispersão da espécie. Em média cada planta produz cerca de 800 a 850 sementes, as quais germinam principalmente durante a primavera. Para que a germinação se processe as sementes necessitam de passar pelos frios do inverno, quebrando a dormência.

Em face da sua ampla distribuição, hábito infestante e a sua relativa intolerância à sombra, Polygonum lapathifolium é potencialmente prejudicial em qualquer tipo de cultura de sementeira onde geralmente ocorre, brotando ao mesmo tempo que a sementeira se desenvolve.
A juntar aos seus efeitos competitivos, Polygonum lapathifolium serve de hospedeira a um significativo número de pragas prejudiciais à agricultura, nomeadamente o vírus do mosaico do pepino (CMV), Fusarium oxysporum que ataca as culturas do feijão, tomate ou espinafre, nematóides da haste da cebola, entre outros.
Em contrapartida, esta espécie é tremendamente importante para a vida selvagem. O néctar segregado pelas flores atrai moscas, vespas, abelhas e até pequenas borboletas. Uma enorme variedade de besouros e larvas de borboletas alimentam-se das folhas e outras partes da planta. Nas zonas húmidas as sementes são também uma fonte importante de alimento para varias espécies de patos e outras aves mais pequenas. Contudo, esta espécie não é do agrado dos herbívoros mamíferos devido ao seu sabor amargo e apimentado.

Polygonum lapathifolium pode ser confundida com Polygonum persicaria que é também autóctone no nosso país e que, muitas vezes, ocorre nos mesmo habitats.
Diferença nas ócreas das duas espécies que podem ser confundidas.
Foto da ócrea de Poligonum persicaria de Miguel Porto/Flora-on
A diferença mais óbvia entre as duas espécies reside na ócrea que em Polygonum persicaria é claramente ciliada ao contrário do que acontece com Polygonum lapathifolium

Em tempos idos, Polygonum lapathifolium foi usada em medicina tradicional. À semelhança do que acontece com outras espécies da mesma família esta planta contém compostos orgânicos com ação terapêutica no tratamento de algumas patologias. As propriedades antioxidantes, hepatoprotetoras e anti-inflamatórias devem-se à presença de substâncias químicas complexas de composição variada produzidas através dos metabólitos secundários e que existem nas partes aéreas da planta, nomeadamente Calconaflavonóides e ácido gálico.

Os metabólitos secundários:
As plantas sintetizam um enorme número de químicos, de natureza muito diversificada. Estes químicos podem ser divididos em metabólitos primários e secundários.

Os metabólitos primários incluem os químicos essenciais para o crescimento e desenvolvimento de todas as plantas, como a fotossíntese ou o metabolismo respiratório.

Os metabólitos secundários são estrutural e quimicamente muito mais diversificados que os metabólitos primários e referem-se a compostos presentes em células especializadas que, não sendo diretamente essenciais, são, ainda assim, necessários para a sobrevivência das plantas.
Os metabólitos secundários são capazes de responder eficazmente às situações de stress, aparentemente atuando como defesa (contra herbívoros, micróbios, viroses ou plantas concorrentes) como sinalização (para atrair polinizadores e animais dispersores das sementes) e também como antioxidantes e protetores da radiação solar.

Existem milhares de metabólitos secundários e são eles os responsáveis pelas propriedades terapêuticas registadas em tantas plantas consideradas medicinais.

Fotos: Abelheira/Lourinhã